Ao amanhecer de 5 de agosto de 2024, Sheikh Hasina Wazed deixou Dhaka em segredo, rumo à Índia, deixando para trás um país em chamas — e um regime de 15 anos que se desmoronou como um castelo de cartas. A fuga da ex-primeira-ministra de Bangladesh não foi um simples ato de sobrevivência política. Foi o clímax de uma revolta estudantil que, após meses de silêncio forçado, explodiu nas ruas com uma força inesperada. Os jovens, cansados de censura, desaparecimentos e eleições fraudadas, viraram o jogo. E o mundo assistiu, de olhos arregalados, enquanto um ícone da democracia se transformava no símbolo do autoritarismo que jurara combater.
A queda de uma ícone
Sheikh Hasina foi, um dia, a mulher que prometeu restaurar a democracia após anos de ditadura militar. Mas, ao longo de seu mandato (2009-2024), ela desmontou cada instituição que deveria limitar seu poder. Em 2011, ela ignorou 26 recomendações de comitês parlamentares para abolir o sistema de governo transitório — um mecanismo essencial para eleições limpas. Foi o primeiro passo. Em 2014, com a oposição da Bangladesh Nationalist Party banida, presa ou exilada, ela realizou eleições que a ONU chamou de "farsa organizada". A partir daí, o país entrou em um ciclo de repressão: jornalistas presos, universitários desaparecidos, líderes políticos acusados de crimes que nunca cometeram. Em 2018, Mohammad Hanif, secretário-geral da Awami League, declarou publicamente: "Enquanto Sheikh Hasina viver, a Awami League permanecerá no poder". Não foi um deslize. Foi um programa de governo.Crimes contra a humanidade
A repressão atingiu seu ápice em julho e agosto de 2024, quando estudantes tomaram as ruas de Dhaka exigindo eleições livres. A resposta foi brutal: tiros em massa, prisões em massa, corpos desaparecidos. Segundo relatórios da Organização das Nações Unidas publicados em fevereiro de 2025, as forças de segurança cometeram crimes contra a humanidade — e a responsabilidade comandante recai diretamente sobre Sheikh Hasina. "As ordens vieram do topo", afirmou um porta-voz da ONU. Não foi caos. Foi planejado. O Dhaka virou um campo de batalha. As universidades, que antes eram centros de debate, se tornaram prisões. As redes sociais, bloqueadas. A imprensa, silenciada.O novo capítulo: Yunus e o peso da reconstrução
Quando Hasina fugiu, o país não caiu no caos. Pelo contrário. Muhammad Yunus, o Nobel da Paz e fundador do microcrédito, assumiu como chefe de um governo interino — sem mandato popular, mas com o peso moral de um herói nacional. Em 5 de agosto de 2025, exatamente um ano após a fuga de Hasina, Yunus anunciou o calendário mais concreto que Bangladesh já teve: eleições em fevereiro de 2026. Mas não foi só isso. Ele promulgou a Declaração de Julho e o Carta de Julho, documentos assinados por partidos políticos que prometem nunca mais permitir a concentração de poder. É o primeiro passo para desmantelar o sistema que Hasina construiu.
As sombras que ainda persistem
Mas o caminho é cheio de armadilhas. As forças de segurança que mataram estudantes ainda estão no poder. A polícia e o exército não foram reformados — apenas trocaram de uniforme. Grupos armados islâmicos aproveitaram o vácuo para atacar mulheres, comunidades LGBT e minorias religiosas. E o governo interino, por sua vez, já prendeu dezenas de opositores sem acusação formal. "Há muita decepção, especialmente entre os estudantes", disse Meenakshi Ganguly, da Human Rights Watch, em agosto de 2025. "As promessas de reforma demoraram mais do que imaginávamos."Um país que precisa de tudo — menos de um novo ditador
O governo interino conseguiu atrair mais de $260 milhões em investimentos estrangeiros durante a Cúpula de Investimentos de Bangladesh em 2025. É um sinal de esperança. Mas dinheiro não reconstrói instituições. Não cura o medo. Não devolve os desaparecidos. O verdadeiro desafio está em desfazer 15 anos de corrupção sistêmica: o judiciário politizado, a burocracia que serve ao partido, os tribunais que condenam sem provas. A Tribunal Internacional de Crimes de Bangladesh já começou os julgamentos contra Hasina e seus aliados. Um museu será construído na antiga residência oficial dela — não como um monumento ao poder, mas como um alerta: "Isto nunca mais".
O que vem a seguir
As eleições de fevereiro de 2026 serão o teste definitivo. Será que os partidos conseguirão se unir? Será que os militares aceitarão perder o controle? Será que os jovens que levantaram as ruas continuarão vigilantes? O mundo está olhando. Porque Bangladesh não é só um país. É um experimento: será que uma democracia pode renascer depois de ter sido enterrada por dentro?Frequently Asked Questions
Como a fuga de Sheikh Hasina impacta os processos judiciais contra ela?
Mesmo estando na Índia, Sheikh Hasina pode ser julgada por crimes contra a humanidade pela Tribunal Internacional de Crimes de Bangladesh. O tribunal já emitiu mandados de prisão e pode solicitar extradição. A Índia, porém, não tem tratado de extradição com Bangladesh, o que dificulta sua captura. Mas o julgamento in absentia já começou — e o veredito será histórico.
Por que Muhammad Yunus é considerado a melhor opção para liderar a transição?
Yunus é um dos poucos líderes em Bangladesh com credibilidade internacional e apoio popular, sem vínculos com a Awami League ou a BNP. Ele não é político tradicional — é um reformador social. Sua reputação como Nobel da Paz e criador do microcrédito lhe dá autoridade moral para enfrentar instituições corrompidas. Mas ele carece de apoio partidário, o que torna suas reformas lentas e vulneráveis a pressões internas.
Quais são os principais riscos para a democracia em Bangladesh agora?
O maior risco é a continuidade das forças de segurança que cometeram abusos sob Hasina. Sem reforma militar e policial, qualquer governo futuro estará sob ameaça de golpe ou repressão. Além disso, o descontentamento dos jovens pode se transformar em radicalismo se as promessas de reforma não forem cumpridas. A impunidade e a corrupção institucional ainda são as maiores ameaças.
O que a Declaração de Julho e a Carta de Julho realmente prometem?
Esses documentos estabelecem 12 princípios fundamentais: eleições livres, independência judicial, fim da censura, proteção a minorias, transparência nos gastos públicos e proibição de qualquer forma de governo personalista. Eles são o contraponto direto ao que Hasina fez. Mas são apenas palavras — até que se tornem leis. A batalha agora é transformar esses compromissos em constituição.
Como a comunidade internacional está respondendo à transição em Bangladesh?
A União Europeia e os Estados Unidos suspendiram sanções e estão oferecendo assistência técnica para reformas eleitorais e judiciais. A ONU monitora os julgamentos de crimes contra a humanidade. Mas a China e a Rússia permanecem silenciosas — e já demonstraram interesse em manter influência no país, mesmo após a queda de Hasina. O equilíbrio entre apoio democrático e interesses geopolíticos será crucial nos próximos anos.
Há chances de Sheikh Hasina retornar ao poder no futuro?
É improvável. A Awami League está em frangalhos, sem liderança legítima. A população a vê como símbolo da repressão. Mesmo que ela retorne, não teria apoio institucional nem popular. O mais provável é que ela viva o resto de sua vida em exílio, como um fantasma da história que ela mesma construiu — e agora tenta apagar.