
A imagem é forte: quadra Arthur Ashe lotada, luzes de segunda à noite e uma veterana de 45 anos ainda encarando a elite. Com um convite da organização, Venus Williams está de volta ao US Open para sua 25ª participação em simples — um número que fala por si. Ela se torna a jogadora de simples mais velha a competir em Flushing Meadows em 44 anos, um marco raro em qualquer esporte profissional. E faz isso repetindo um mantra que virou cartão de visitas: “o tênis está no meu DNA”.
O retorno não é um passeio pela memória. Vem depois de um período pesado de recuperação, que incluiu uma cirurgia para miomas uterinos e meses sem competir de forma contínua. Mesmo assim, a americana voltou à trilha no verão do circuito norte-americano, testou o corpo, reencontrou o ritmo e, em Washington, celebrou sua primeira vitória em torneio da WTA em 16 meses. Em Cincinnati, seguiu acumulando horas de jogo. O objetivo era simples e direto: chegar a Nova York pronta para brigar em melhor de três sets, num palco que conhece como poucos.
A estreia é de respeito. Do outro lado estará Karolina Muchova, cabeça 11 e finalista de Roland Garros em 2023, além de semifinalista do US Open no mesmo ano. A tcheca domina bem as transições, varia alturas e efeitos, e costuma dar pouco ritmo. Para Venus, que busca encurtar pontos com saque pesado e primeira bola agressiva, o duelo é um quebra-cabeça tático: impor potência sem perder a paciência, controlar a segunda bola e proteger o físico nos ralis mais longos.
O calendário ajudou a transformar o jogo em evento. A organização reservou a Arthur Ashe Stadium, no horário nobre, para celebrar uma história que começou ali em 1997. De lá para cá, foram títulos em 2000 e 2001, vitórias em duplas com a irmã Serena (1999 e 2009), finais emocionantes e partidas que lotaram a maior quadra do mundo. Venus não vence um jogo de simples no US Open desde 2019, o que apenas amplia o peso de cada game agora. Qualquer avanço tem contornos históricos.
Se você pensa no convite (wildcard) como um aceno simbólico, vale ajustar o foco. O US Open usa esse recurso para dar chance a veteranos e jovens que, por ranking, ficariam fora da chave. No caso de Venus, há história, apelo popular e uma atleta que, mesmo aos 45, ainda consegue competir com armas claras: saque, envergadura, leitura de quadra e experiência em momentos grandes. Em noites de Ashe, esse pacote já decidiu muito jogo.
O contexto físico importa. Miomas uterinos são comuns em mulheres em idade reprodutiva e podem trazer dor, fadiga e queda de performance. Para quem vive de explosão, deslocamento lateral e aceleração de braço, a recuperação pós-cirurgia pede tempo. Venus usou torneios preparatórios para calibrar detalhes: toss da bola no saque, ajuste de passos antes do contato e, principalmente, a confiança para entrar na bola com a precisão que a consagrou. Não é efeito imediato. É tijolo sobre tijolo.
Há também o lado mental. Depois da aposentadoria de Serena em 2022, ficou o capítulo aberto do legado Williams no tênis. Venus, que por anos liderou a luta por igualdade de premiações — foi voz decisiva na virada histórica de Wimbledon em 2007 —, segue como presença ativa no circuito. A cada entrada em quadra, ela lembra que trajetória esportiva não precisa obedecer ao relógio do senso comum. A idade pesa? Claro. Mas a rotina, a vontade e a técnica ainda constroem partidas competitivas.
Em números, a carreira sustenta a reverência: sete títulos de Grand Slam em simples, 14 em duplas, dois em duplas mistas, quatro ouros olímpicos e 49 troféus no circuito. Tudo isso num tênis que mudou de velocidade e potência ao longo de três décadas. Venus viveu a transição da raquete de grafite leve, enfrentou gerações inteiras, viu a explosão das estatísticas e do estudo de dados, e aprendeu a adaptar o jogo sem abrir mão da identidade agressiva.
Do lado de Muchova, há um fator que sempre complica a vida de quem ataca de forma direta: a variedade. A tcheca usa slice para baixar a bola, entra na quadra para fechar ângulos, muda direções sem telegráfo e tem mão para amortecer. Em resumo, tira o oponente da zona de conforto. Para Venus, o mapa de vitória passa por porcentagem alta de primeiro saque, devoluções profundas — especialmente na cruzada de backhand — e atenção redobrada nas bolas curtas que convidam para a subida à rede. O duelo de tempos será a história dentro da história.
Também há o fator Ashe. Muita gente subestima o impacto de jogar na maior arena do circuito, com mais de 23 mil pessoas, teto retrátil e acústica que amplifica cada reação. Pouca gente conhece essa atmosfera como Venus. O silêncio antes do saque, o barulho logo depois do winner, o timing do pedido de desafio… são detalhes que viram centímetro no placar. Em jogos apertados, pesam.
A volta em Nova York ganhou contornos múltiplos porque Venus decidiu encarar tudo: jogou também a chave de duplas mistas, ao lado de Reilly Opelka, e saiu na estreia. Poderia ter poupado? Poder, podia. Mas o recado foi outro: competir, sentir o ambiente de partida, reajustar a rotina entre aquecimento, sala de fisioterapia e quadra. Quanto mais repetição, maior a chance de a execução aparecer quando importa.
Falar de longevidade no tênis feminino hoje é falar de gestão de carga, nutrição, sono e tecnologia. O circuito está cheio de medidores de potência e vídeo-análise para corrigir padrões em dias. Ainda assim, nada substitui a leitura que vem de anos de experiência. Venus entende quando alongar o ponto para testar o fôlego da rival, quando acelerar no corpo para tirar o braço, quando usar o slice defensivo para comprar tempo. Esse repertório não desaparece com o tempo — e às vezes compensa o que o físico já não entrega no automático.
Se você olha além do placar, dá para ver por que esse retorno chama tanta atenção. Nova York é o Slam que mais abraça narrativas. É a cidade das segundas chances, do público barulhento que vibra com vitórias improváveis e, vamos combinar, adora um roteiro de resistência. Venus encaixa como poucos nessa moldura. O resultado, claro, conta. Mas a imagem de uma atleta de 45 anos entrando para disputar ponto a ponto com uma top 15 tem valor próprio.
Entre as marcas que ajudam a dimensionar a carreira e o momento:
- 25ª participação em simples no US Open — recorde de presenças para uma jogadora em Nova York.
- 2 títulos de simples no torneio (2000 e 2001) e duas taças de duplas com Serena (1999 e 2009).
- 7 Grand Slams em simples, 14 em duplas e 2 em duplas mistas ao longo da carreira.
- 4 ouros olímpicos, com presença em cinco edições de Jogos.
- Primeira vitória em torneio da WTA em 16 meses, no hard court de Washington, como parte da preparação para o Slam.
Há quem veja o confronto com Muchova como choque de gerações, mas a lógica é menos romântica e mais prática: execução de plano. Se Venus impõe o primeiro saque, encurta pontos com a direita na paralela e evita ficar presa nos intercâmbios de slice, a partida fica no alcance. Se Muchova dita o ritmo com variedade e arrasta a disputa para trocas longas, a montanha cresce. O termômetro? A primeira metade do primeiro set, quando as duas jogadoras ainda estão ajustando olho e mão ao ambiente da Ashe.
O calendário também favorece o espetáculo. Segunda à noite em Nova York significa público aquecido, audiência alta e um palco com cara de final já na primeira rodada. Não é coincidência. O torneio sabe o que tem em mãos: uma lenda em busca de mais um capítulo, contra uma adversária que representa a elite atual. É o tipo de cardápio que vende ingresso, puxa audiência e vira clipe de melhores momentos no fim do dia.
E por falar em capítulos, a história da família Williams continua ecoando no torneio. Serena se aposentou em 2022, com a mesma Arthur Ashe como cenário de despedida. Desde então, cada entrada de Venus em quadra carrega um pedaço desse legado: a influência sobre gerações de meninas negras no esporte, a exigência por condições iguais para mulheres no circuito e a prova concreta de que é possível construir carreiras longas sem abrir mão de ambição. Há simbolismo, sim. Mas há, sobretudo, a atleta que ainda gosta da competição.
Para muita gente, isso é o ponto central. Depois de tudo o que venceu, por que seguir? Porque competir dá sentido ao cotidiano. Treino, recuperação, estudo de adversário, rotina de torneio — quem não gosta disso não sobrevive tanto tempo no topo. No caso de Venus, a resposta está nos gestos miúdos: ela chega cedo ao complexo, aquece com seriedade, pratica o saque a partir de alvos, testa passadas curtas na subida à rede, conversa com a equipe para ajustar microdetalhes. Quando a bola sobe, ela quer jogo.
Vai dar para repetir as grandes campanhas? Difícil prever. O circuito ficou mais profundo, com 20 jogadoras capazes de ganhar de qualquer uma numa noite boa. Mas é justamente por isso que Nova York vibra com histórias como a de Venus. Tudo pode acontecer numa chave de duas semanas. E, para quem volta aos 45, cada vitória vira um marcador. Um estatuto de longevidade. Uma lembrança de que talento, quando encontra motivação, alonga a vida útil de qualquer carreira.
Seja qual for o placar contra Muchova, o retorno já acendeu uma conversa mais ampla: até onde dá para ir quando o corpo é trabalhado com cuidado e o desejo de competir continua vivo? O tênis tem visto respostas interessantes: jogadoras que estendem o auge para além dos 30, outras que voltam após longas pausas e se recolocam no topo, e veteranas que escolhem bem o calendário para extrair o máximo do que ainda têm. Venus está nessa prateleira. E Nova York, mais uma vez, é o lugar onde essa discussão ganha luz de holofote.
Então, sim: aos 45, com a Ashe lotada e o relógio jogando contra, Venus volta a fazer o que sempre a moveu. Saca, recebe, acelera, ajusta o corpo, lê a adversária, conversa com a quadra. O resto é tênis. E poucas pessoas no mundo entendem melhor o que isso significa.
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